A leitora que assina seus recados à coluna como "Uma mineira" comentou outro dia a contradição vivida por certas mulheres brasileiras do nosso tempo, que ocupam funções importantes nas empresas e instituições públicas e se comportam, em casa, como se comportavam as tias e as avós.
Longe da família, essa mulher moderna lidera equipes, toma decisões difíceis, contorna problemas delicados, sabe dar ordens e faz as coisas acontecerem.
Mas, quando volta para casa, encarna o mais antigo e tradicional de todos os papeis: a gestão das compras no supermercado e a direção da cozinha, da limpeza, do estudo dos filhos e das roupas do marido.
Essa mulher trepidante no mundo exterior é obrigada a esquecer tudo que sabe e deixar falar apenas os sentimentos, ao cuidar dos pequenos dramas familiares, que podem ir de uma crise de choro da filha mais velha, que rompeu o namoro, a um ataque de nervos do garoto, passando pela cara emburrada do marido, eternamente insatisfeito com ele próprio e com o mundo em volta.
As feministas militantes - adotando racionalidade tipicamente masculina - sempre condenaram essa "dupla jornada" com base apenas no volume de trabalho que a mulher realiza a cada dia, sem remuneração em dobro.
Com a permissão das feministas, convém ir mais fundo. E tudo faz crer que a questão mais grave e central é outra. Dinheiro tem o seu papel, assim como tudo aquilo que ele é compra. Mas a realização pessoal, o amor e o sentimento de que a vida faz sentido são insubstituíveis.
Bem mais preocupante que a soma de reais que a mulher recebe por trabalhar 14 horas/dia e sem repouso semanal remunerado é o roubo do seu o tempo e da sua energia para cuidar de si mesma, ser bonita, pensar, estudar, perceber por onde anda o seu eu e, de vez em quando, até namorar o companheiro.
A nossa "Mineira" não revela se é casada, mas parece conhecer muito bem a trajetória dessas mulheres que chegam a renunciar à sua identidade, sensibilidade e criatividade, com a ilusão de que assim irão preservar o casamento e a unidade da família.
Aqui pra nós, é ginástica para campeãs olímpicas e exigência demais para uma única pessoa.
- São os paradoxos que a vida nos apresenta - diz a leitora. - Força e fragilidade, desejo e dever, sonho e realidade.
Segundo ela, não se trata apenas de uma dupla jornada, mas de uma relação ambígua com os diversos aspectos da vida. Relação que congela, envolve e anestesia tantas e mulheres e meninas.
Muitas resistem e se revoltam contra esse modelo pós-moderno de sujeição e renúncia, atenuado e disfarçado pelo papel que desempenham fora de casa. Elas sabem que haverá um preço por sua rebelião e se dispõem a pagá-lo.
Essas abraçam a tentação de voar, abrir novos caminhos, viajar por mares nunca dantes navegados e recuperar a confiança em si mesmas e na sua capacidade de crescer, criar e amar.
Mas a maioria, cedendo às pressões da sociedade e da família, aceita esse duplo papel. Essas vão sufocando, lentamente e sem perceber, o que existe nelas de melhor. O que existe nelas de mulher.
E algumas, ouvindo os moralistas em eterno plantão, até ajudam a instalar as grades na gaiola dourada que as impede de voar. Terão uma vida sem sonhos, para sempre. Uma vida sem vida.
- Voar pode ser mortal - elas dizem.
E, em seguida, morrem.
Tião Martins
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